Com apoio do FAC, livro mostra a força da cultura de Brasília


Brasília vai olhar de novo para a trupe de artistas que deu à capital parte fundamental do DNA de sua irrequieta cultura. O livro ?A Nave 508: espaço dos Insistencialistas?, da artista plástica e pós-doutora em artes Suyan de Mattos, conta, em 234 páginas, a história da primeira fase do Espaço Cultural Renato Russo, na 508 Sul, em 1975, ao primeiro fechamento do complexo cultural, em 1986.

Com aporte do Fundo de Apoio à Cultura (FAC ? edital Áreas Culturais 2018, no valor de R$80 mil e geração de dez empregos diretos), o trabalho, baseado em 53 entrevistas, será lançado no dia 10 de setembro no Beirute da Asa Sul . A pesquisa conta como surgiram o Galpão, o Galpãozinho e o Centro de Criatividade, e como esses espaços foram empanturrados de iniciativas ousadas por uma juventude que buscava a própria identidade na capital que também carecia de uma.

Gerido pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec), o Espaço Cultural Renato Russo surge a partir de galpões da Novacap próximos às instalações da extinta Fundação Cultural no quadrilátero da primeira unidade de vizinhança desenhada por Lúcio Costa ? formada pelos edifícios no entorno da W3 a partir da 107/108 Sul, passando pela 308 Sul, W2 e 508 Sul.

Essa área foi descrita pelo falecido poeta da cidade TT Catalão como o epicentro dos abalos sísmicos gerados na cidade por atores e atrizes, bailarinas e bailarinos, artistas visuais e da área musical, cineastas, produtores culturais e ex-diretores do complexo, incluindo experimentos do pessoal da graxa em iluminação, sonoplastia e outros ofícios.

?A Nave 508: Espaço dos Insistencialistas? é dividido em três partes, dedicadas a cada um dos espaços que formaram o complexo cultural no seu início ? Galpão, Galpãozinho e Centro de Criatividade. Cada seção dessas tem três capítulos, nos quais a autora propõe uma narrativa histórica, com depoimentos e fotografias. Na página de homenagens, no início do livro, um agradecimento ao ator Aluísio (Batata) Nobre Mendes, a quem cabe o crédito de ter formulado o termo ?insistencialistas?, capturado no título.

O nome do livro de Suyan tem ressonâncias místicas e evoca o sentido de templo (nave de uma catedral, por exemplo), nada tendo a ver com a noção de espaçonave, onde não caberia tanta gente disposta a se arriscar por um sonho.

DIABO INAUGUROU O ESPAÇO

?O Homem que Enganou o Diabo e Ainda Pediu o Troco?, escrita pelo jornalista Luís Gutemberg a partir de um cordel e dirigida por Laís Aderne, inaugurou o Galpão em 1975. João Antônio Esteves de Lima, ator, diretor e professor emérito aposentado da Universidade de Brasília (UnB), que fez o papel do Diabo fala da importância do livro de Suyan.

?O livro da Suyan está nos trazendo à memória um momento extremamente importante da cultura de Brasília, que tem efeitos até hoje em todas as áreas, e um monte de gente que viveu essa época de lembranças deliciosas de prazer, conhecimento, troca e comunhão. O livro demonstra que éramos felizes numa época em que isso não estava fácil?, diz João Antônio sobre o ?Nave?.

O título da peça de estreia acabou dando origem a uma blague de TT Catalão. ?Ele dizia que nós enganamos o Diabo, mas este nos deu o troco, anos mais tarde, fechando o teatro!?, conta ele. A interdição foi em razão da insegurança para o público da estrutura de madeira, onde montes de fios, às vezes desencapados, serpenteavam.

Se João Antônio encarnou o diabo na inauguração do Galpão, outro artista lendário na cidade, Néio Lúcio Barreto ? conhecido pelo trabalho ?Concerto Cabeças?, de ocupação de espaços públicos de Brasília, no final dos anos 1970, com espetáculos de música, artes plásticas, cinema e poesia ? personificou o personagem do ?homem? na peça de Gutemberg.

Sobre o livro de Suyan, Néio, hoje recluso, diz que foi um ?achado porque trata de um dos espaços mais importantes da cultura do DF. Brasília era uma cidade nova, sui generis, completamente diferente como urbes, com uma vocação para experimentações futuristas na arte, assim como na política, no âmbito social, habitacional?.

Néio conta que o discurso da ditadura militar era que o projeto de Brasília seria mantido, mas os sonhos inspirados pelas ideias de Niemeyer e Lúcio Costa, não. A palavra de ordem da repressão na época do nascimento da 508 para reuniões públicas era ?circulando??. Entretanto, emenda, o complexo cultural fez justamente o contrário e se tornou ?um local que aproximou as pessoas, com seus pensamentos, sua busca de identidade, seus quereres.?

Galpão, Galpãozinho e Centro de Atividades, relata Néio, deram os meios para que um desejo de arte ainda sem tradições locais consolidadas se manifestasse. Lembra das segundas-feiras, no Galpão, quando cinco grupos musicais se inscreviam para apresentar, cada um, duas canções num programa chamado Feira de Música. Segundo ele, ?era comum o local ficar lotado, com mais de 500 espectadores?.

Ao lado, no Galpãozinho (eram contíguos a ponto de não poderem ser usados simultaneamente, pois o som vazava), surgiu o ?Jogo de Cena?, em que, na mesma vibração, o pessoal do teatro encenava esquetes, enquanto a turma da graxa abusava das experimentações em cenografia, luz e som, esticando as cordas das possibilidades estéticas.

ARTE EM EBULIÇÃO

A atriz Iara Pietricovsky fala da Brasília de então como ?um lugar de muita efervescência teatral, com mais de 70 grupos de teatro, que produziram um dos momentos mais interessantes de atitudes contestatórias à ditadura militar.?

O Galpão foi um teatro improvisado que virou o caldeirão que alimentou criativamente essa cidade em teatro, música e dança. Tive a sorte de ser parte ativa desse movimento em várias montagens, trabalhei com pessoas incríveis que fazem parte da história do teatro da cidade?, discursa.

Outra testemunha ocular dessa história foi James Fensterseifer. Sobre ele, Suyan diz no livro que ?era um dos garotos que assistiam ao Jogo de Cena e se inscreviam para fazer iluminação. Quando os Galpões foram fechados para a reforma, quem retomou o Jogo de Cena foi o James. Foi no Jogo de Cena que Marcelo Saback, Cássia Eller, Janete Dornellas, Renato Russo, Paletó e Gravata, e centenas de outros artistas da cidade se apresentaram?.

Ele gostou do livro: ?toda e qualquer pesquisa histórica que oficializa uma publicação, concretizando a memória, é bem-vinda e deve ser reverenciada. A 508 Sul é um espaço marcante que exemplifica, com perfeição, a verve criativa dos artistas de Brasília, nem sempre reverenciados como merecem. O único problema de um memorial dessa magnitude é o encontro das imperfeições da memória com as falhas de documentação. Então, enalteçamos essa nobre e afetiva iniciativa da Suyan de Mattos, que se sobrepõe aos equívocos que, por ventura, tenham sido registrados. Vida longa à 508 Sul.?

LIVRO NASCE COM ?ERRATA,

A autora de fato acordou no meio da noite várias vezes ao se deparar com erros de documentação nesse trabalho de história oral, em que a linguagem livre busca se impor como opção teórico-metodológica. ?Meu interesse como artista plástica era que eu pudesse ilustrar esse livro muito bem, era uma necessidade ter as imagens daquela época. Só que eram imagens analógicas e velhas. Graças ao Cléber Cardoso Xavier, que conseguiu trabalhar em todas, conseguimos um resultado lindo?, relata Suyan.

Mas ela adverte que há erros, e o livro na presente edição terá de ser acompanhado por uma errata. ?Já avisei todos os fotógrafos e todo mundo tem sido muito compreensivo?, confessa aliviada. ?Muitos de nós, daquela época, estamos vivos, mas as memórias ficaram no século 20, inclusive a minha?, arremata.

A atriz e jornalista Carmem Moretzsohn, como todos os entrevistados para essa reportagem, também citada no livro, diz que teve ?a sorte de estrear como atriz no Galpão. Ainda me recordo do cheiro do teatro, do calor dos refletores, da sensação inigualável de me deitar no queijo (o palco de madeira em formato redondo) depois do espetáculo e ficar ali, ainda sorvendo o encantamento da cena. Era tudo muito mágico.?

Afirma que, como jornalista, pôde entrevistar vários artistas visuais que atuavam no Centro de Criatividade. ?Entrar naquele espaço era, para mim, como penetrar no umbigo do mundo, no local mesmo da criação. Cores, tintas, gravuras, pessoas concebendo a arte em estado puro. Toda essa história ficaria para sempre guardada apenas na memória, não fosse o esforço hercúleo de Suyan de Mattos. Como uma Quixote, ela brigou com os moinhos de vento para deixar um legado único para a história da cidade. Espero que esse livro seja apenas uma primeira edição, a ser revista e ampliada, ganhando novos e ricos depoimentos.?

A 508 Sul, como uma boa série, dá pano para manga e não flerta com o final da trama. Suyan já deu a partida na pesquisa sobre um segundo momento do espaço, retratando o período entre 1993, quando voltou a funcionar, até 2013, quando houve uma reforma arquitetônica que o deixou fechado até 2018. Há dois meses, acompanhada da artista visual e doutora pela UnB, Eloiza Gurgel Pires, Suyan vem conduzindo ?lives? diárias na página do livro no Instagram. O trabalho ainda não tem título provisório.

A NAVE 508: ESPAÇO DE INSISTENCIALISTAS

Lançamento

Local: Beirute Bar e Restaurante ? CLS 109

Data: 10 de setembro de 2021

Horário: 19h às 21h

Preço do exemplar: R$ 40

O livro, com tiragem de mil exemplares, estará à venda na Banca da Conceição (308 Sul) e na Livraria do Chiquinho (Minhocão da UnB)

Fonte: Ascom/Secec